sexta-feira, 17 de julho de 2009

A MULA RUGE #

"Supunha-se que mãe da Mula era uma égua, robusta, nobre e altiva, uma Alter-Real de uma qualquer coutada do norte, dada a grandes passeios e caças, e de atavios esplendorosos, e que o seu pai seria um jumentinho mais humilde, anafado e feliz, habituado a acartar bilhas de água e caixotes de peixe, mas dado a guitarradas nocturnas, versos soltos e copos sem abuso. Supunha-se.

Supunha-se que a Mula era estéril, como é comum à sua natureza de mula. Supunha-se.

Supunha-se que a Mula iria ficar no seu cantito, remoendo palha e acartando o que havia a acartar. Supunha-se.

Viemos a descobrir afinal que a Mula tinha como pai um Dragão (não fosse ela do norte), daqueles que berra e bate os punhos na mesa quando o vinho tarda, e que não tem sequer ideia do que significa desistir, mesmo que o passo seja maior que a perna e acaba por ficar com uma azia terrível de quanto em vez. Quanto à mãe, não se sabe bem quem é, já que a abandonou à nascença, mas sabe-se que era senhora de boa classe, e prendada nas artes, nas Belas ou nas Altas, e que por isso mesmo se envergonhou de dar à luz tal criatura, que de facto se veio a revelar mais inclinada à rabisqueza da mais baixa classe das imagens. Diz-se que alguns dos professores dessa senhora sabem disso e, quando com a Mula se cruzam, se persignam, suando.

Viemos a descobrir também que a Mula não era nada estéril, bem pelo contrário, é tão fértil quanto as éguas da Lusitânia, que se diz se emprenhavam por Zéfiro, o vento do Ocidente (que é como quem diz, em parlar antigo, “por dá cá aquela palha”: deitavam-se com qualquer um, as lambisgóias!). E basta sacudir a cauda emproada uma ou duas vezes, lá vão atrás dela pretendentes felizardos e cumpridos, deixando atrás os frutos do seu encontro.

A Mula Ruge é uma espécie de infantário, onde podem vislumbrar essa maldita e mutante prole de tantos anos de rambóia. É também uma espécie de orgia, pois poderemos ver in actu as trampolinices da Mula com seus novos namorados (alguns deles com idade para ter juízo, mas que ainda revelam ter pêlo na venta). E ainda uma espécie de casamento de aldeia, já que convidaram todos os compadres e comadres para um pé de dança, comezaina e outras vilanias.

De todos estes animais faz-se não uma fábula, mas, como com uma certa cadela de nome Laica, essa de outras paragens mais sulistas e solarengas, uma constelação proteica. Uma constelação daquilo a que se dá o nome, flutuante, entre chusma e artistas (“colectivo” é o termo oficial). Velhos e novos, clássicos e mutantes, diplomados e párias, bem-comportados e caóticos, todos se agregam sob a asa... da Mula. O que os une é um grau de amizade, em primeiro lugar, elo o qual se consolida pela mútua admiração. Não obstante os "estilos" (e humores) se diferenciarem, radicalmente por vezes (onde juntar as manchas de tinta despejadas ao acaso de um e a correcção representativa de outro?; a épica do nonsense de uma e a encarreirada narratividade de outra?), e os diversos graus de sucesso, procuram-se entre si para esses gestos, em uníssono, fanzines, auto-edição, feiras, exposições independentes, blogs, links de uns para os outros. É dessa e nessa associação livre que chegamos ao epítome de sinergia (aqui, palavra plenamente justificada) com esta máscara animal. É o que de mais próximo existe no nosso burgo de um movimento nesta área em particular (e que nome lhe dar?), ainda que sem programas, dogmas, manifestos, mas sem rede também... coerente e coeso como apenas a amizade o pode fundar, corroborado pelos actos criativos de cada um: uma comunidade estética.

Dessa circunstancialidade de acção e de esferas comuns, emerge a ideia de um descomprometimento para com estratégias de conformação a uma área que, à partida, não tem lugar para este tipo de experiências (a catalogação de "desenho" não parece correcta, o preconceito em relação à ilustração falha o alvo, a diminuição a outros territórios "úteis" fica mudo). Trata-de de desenho, seja ele nascido do lápis, da grafite, ou da ponta de um pincel. É o movimento de dança do pulso aquilo que dita a ideia de ser desenho, aliada à escala e à proximidade que a sua fruição exige (bem diferente da distanciação aurática a que outras disciplinas artísticas obrigam).

Há uma transformação do desenho num instrumento de representação onírica, fantasiosa, comediante, dramática, narrativizante, para nos devolver os nossos rostos e aqueles que se cruzam todos os dias. E todos com beiça de animal procurando o seu rugir." (Texto de Pedro Moura)










( Nota: agradecimentos a todos os colaboradores pela intensa semana de montagem da exposição; e ao Miguel Pinho e Kaja Avbersek pelo empréstimo de algumas fotos.)

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